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Como falta de dinheiro prejudica inteligência e afeta decisões
Os esforços para se livrar de apuros financeiros - ou simplesmente sobreviver, caso de mais e mais famílias brasileiras - têm significativas consequências sobre a cognição
É um quadro familiar nos últimos tempos: o orçamento está apertado e entrar no vermelho tem sido uma constante. Eis que surge um gasto inesperado. O carro quebrou e o conserto vai sair muito mais do que se pensava: R$ 3.000.
O cérebro precisa arrumar uma saída: atrasa algumas contas para garantir o dinheiro do mecânico? Faz só o pagamento mínimo do cartão de crédito no mês? Pede um empréstimo para socorrer as finanças que já vinham pressionadas?
Independente do caminho escolhido, os esforços para se livrar de apuros financeiros - ou simplesmente sobreviver, caso de mais e mais famílias brasileiras - têm significativas consequências sobre a cognição.
É algo explicado pelo cientista comportamental Eldar Shafir, da universidade Princeton, nos EUA, e o economista Sendhil Mullainathan, de Harvard, em um livro de 2013 chamado Escassez - Uma Nova Forma de Pensar a Falta de Recursos na Vida das Pessoas e nas Organizações (editora Best Business).
A dupla emprega o termo "banda larga mental" para ilustrar a capacidade cerebral em situações assim.
Um computador com muitos programas abertos vai ter dificuldades para processar informação. A internet fica lenta. Os vídeos vão travar o tempo inteiro.
Da mesma forma, uma cabeça cheia de problemas financeiros terá a performance prejudicada: ficará sobrecarregada e levará a decisões ruins.
"A banda larga mental é muito limitada. Muitas vezes você precisa focar na urgência do agora e faz isso com competência: resolve o problema. Mas se esse movimento ocorrer o tempo inteiro nunca será suficiente. Vai negligenciar outras áreas da sua vida", afirma o israelense Shafir à BBC News Brasil.
Para mensurar o impacto na inteligência, Shafir e Mullainathan realizaram um experimento semelhante à situação apresentada no começo do texto.
Foram a um shopping da cidade norte-americana de Nova Jérsei e selecionaram pessoas de condições econômicas distintas. Primeiramente os participantes eram confrontados com a necessidade de arcar com uma despesa de US$ 300 pelo carro que quebrou.
Na sequência foram aplicados testes de Raven, que medem a inteligência fluida dos participantes. Os resultados não mostraram diferenças significativas entre ricos e pobres.
No entanto, quando o valor foi alterado de US$ 300 para US$ 3.000 na situação hipotética apresentada, eles constataram que os mais pobres tiveram uma queda bastante considerável na pontuação (-13) aferida no método.
A inteligência prejudicada, claro, pode ser decisiva na tomada de decisões — principalmente em um contexto social com pouca margem para passos em falso.
"Se eu cometo um erro, se faço um mau investimento, se esqueço de pagar uma taxa, é só uma irritação. Mas a vida segue. Se você é pobre e comete esses mesmos erros, o preço na vida será muito mais alto. Há menos espaço para erros, assim a vida fica mais complicada, mais difícil", diz o psicólogo.
Pobreza e dívidas são constantemente atribuídas a falta de responsabilidade financeira e disciplina para poupar.
É algo ecoado por coaches financeiros influentes e até pelo ministro da Economia. Em uma entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Paulo Guedes disse que "os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo".
Uma pesquisa recente do Serasa, no entanto, mostrou que 70% dos endividados com o cartão de crédito usaram essa forma de pagamento para comprar comida no supermercado. Ou seja, a maioria ficou com o nome sujo para garantir algo básico do dia a dia.
Em 2019 um levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) indicou que 67% dos consumidores brasileiros não conseguem guardar nada do que ganham.
Desse total, 40% justificou que a renda muito baixa não permitia a poupança.
Mas muitos podem se perguntar: onde entra o esforço individual, a responsabilidade pessoal, para sair da pobreza?
"Responsabilidade pessoal é importante. Mas não é suficiente se o contexto trabalha contra você", diz Shafir.
"Nós sempre damos o exemplo dos pilotos de avião. Se a cabine de pilotagem foi bem projetada, bem construída, e o piloto é responsável e tem bom conhecimento da função, a pilotagem irá bem. Se houver problemas estruturais na cabine, pilotos muito capazes e responsáveis podem derrubar um avião."
O cientista comportamental afirma que pessoas de baixa renda, de fato, desenvolvem uma sabedoria de sobrevivência contra condições adversas. "Mas é apenas uma questão de tempo, azar ou circunstâncias antes que o tombo venha novamente." O cérebro vai dar um passo em falso em algum momento.
Decisões impulsivas
Flavia Ávila, especialista em economia comportamental e fundadora da consultoria InBehavior Lab, diz que "um dos pontos-chave da pobreza é que em momentos de escassez, seja de dinheiro ou de tempo, você tende a tomar decisões impulsivas, instintivas e menos racionais no geral".
"Antigamente dizia-se que faltava informação para a pessoa pobre. Mas digo que apenas informação não é suficiente para gerar ação. Se gerasse, todo mundo estava milionário. Informação a gente tem demais. Raramente a informação vai gerar mudança de comportamento."
Ávila cita o Prêmio Nobel Daniel Kahneman, autor de Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar (editora Objetiva, 2011), que popularizou um modelo de tomada de decisões em que situações de escassez levam a julgamentos apressados - e eventualmente a más decisões.
Ela diz que o modelo é uma simplificação de um processo cerebral mais complexo, mas explica que "no sistema 1 existe a ideia de tomada de decisões mais instintivas e no 2, mais lentas e refletidas. Quando você está em uma situação de escassez, 95% do tempo é do tipo sistema 1".
Shafir costuma ilustrar a situação com a imagem de "um incêndio, em que você não pergunta quanto custa o balde d'água que você precisa para apagar o fogo que está consumindo a sua casa".
Viés do presente
Fernando Fonseca, economista e professor da Universidade Federal do Tocantins, investigou na sua tese de doutorado a capacidade de poupar (ou não) de pessoas em condição de extrema pobreza no Bico do Papagaio, região no norte do Tocantins.
Em outubro de 2021, o Brasil tinha 27 milhões de pessoas na pobreza (renda até R$ 290 por mês), segundo levantamento da FGV Social.
Os entrevistados do estudo de Fonseca tinham ingressos econômicos instáveis e dificuldade de acesso a educação e saneamento básico.
O pesquisador analisou a "taxa de impaciência" dessa população em questionamentos do tipo "você prefere receber R$ 100 hoje ou R$ 150 daqui a uma semana?".
Uma das percepções foi de que as tomadas de decisão são orientadas pelo "viés de presente".
"Essas pessoas muito pobres e trabalhadoras têm o horizonte temporal muito curto, não se visualizam no futuro. Então não é que esses gastos sejam irracionais, mas dado o excesso de preocupações que têm, desde alimentação, moradia e situações precárias, essas pessoas não conseguem ter nenhum tipo de planejamento", diz Fonseca.
Mesmo assim, algum esforço de economia era feito. Como se trata de um setor sem acesso a bancos, "desbancarizado", famílias no norte tocantinense tentavam uma espécie de poupança não-monetária: criar animais de médio e pequeno porte.
"Para atender uma necessidade imediata. O animal tem liquidez, embora talvez seja vendido por um valor abaixo do esperado. Isso é forçado pelo período da fome, de seca intensa, nessa região."
Como aliviar a 'banda larga mental'
Shafir, de Princeton, diz que "de uma certa forma, nossa vida seria mais fácil se fosse verdade que os pobres merecem ser pobres porque não se esforçam o suficiente ou não têm capacidade. Mas não: pensando que há pessoas que acabam na pobreza mesmo que tenham mérito, capacidade e inteligência, a vida parece injusta".
"Os dados que temos mostram que os pobres são muito focados e têm grande conhecimento de compra, de como conseguir o menor preço. Mas se você está focado em garantir o dia seguinte ou a próxima semana, você nunca vai pensar sobre o ano que vem. E aí tudo vira um grande desafio", diz.
O psicólogo israelense considera que descobertas sobre economia comportamental fornecem um "otimismo de que políticas públicas possam fazer diferença, com ações na educação, transporte ou mesmo uma renda mínima".
Ou seja, garantir padrões mínimos de vida alivia a sobrecarga em cima da "banda larga mental".
"E nem precisa ser apenas através do governo. Grandes corporações poderiam entender que dar melhores condições para seus funcionários leva a menos erros cometidos no ambiente de trabalho. Ou seja, ajuda a própria empresa em nível corporativo fornecer padrões mínimos aceitáveis de trabalho."
Para Flavia Ávila, do InBehaviour Lab, a pobreza e a extrema pobreza afetam "a sociedade como um todo: influencia questões econômicas, climáticas e até temas menos palpáveis. Está bem amadurecida a ideia de que a desigualdade social é prejudicial a sociedades que prosperam".
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